domingo, 4 de agosto de 2013

Sing me to Sleep, darling (II)

   As mãos frágeis seguraram-me, a boca fraca estremeceu. Olga tinha olhos cansados. O sujeito do carro eu não observei, eu não quis observa-lo. O arrepio do meu corpo denunciou-me. Eu a esperava, esperava sentado, em pé, enquanto corria à noite na esperança de revê-la.
   Um ano após aquele bilhete, vê-la de novo foi como chutar a quina da mesa, senti vontade de vomitar toda aquela comida congelada que eu comi desde então, beija-la a boca e dizer que dessa vez ela se atrasou para o jantar.
  Eu que costumava cozinhar para nós dois, perdi a vontade. Aquela cozinha tinha a dança de Olga, tinha o seu cheiro de chá de Erva-doce depois das refeições e de Camomila pela manhã - pra acalmar- ela dizia. Ver o seu lugar na mesa vazio me consternava. Eu voaria os pratos pela janela, mas depois desisti, eu doei seus bules - os quais eu comprei- e a mesa eu fingia não ver, larguei as panelas de lado, bastava-me os congelados e enlatados.
  Olga voltou e só cuspiu um "olá" sobre meu rosto, depois disse-me que eu andava "morgado e borocoxô" e eu não entendi sua gíria; Percebi que ainda amava o seu sotaque, depois olhei para os seus pés e ela não calçava o  antigo All Star. Olga depois de julgar-me e invadir a casa, como se só tivesse ido comprar o pão, falou-me da razão de sua volta:
 - Esqueci coisas minhas
 -  Esqueceu a casa inteira - eu falei, com olhos na contramão aos dela
- Minha saia jeans, aquela surrada...vistes?
- A da praia?
- Sim
- Segunda porta do guarda-roupas, prateleira de cima - Olga correu a mão sobre a porta - Deixa que eu pego! - retruquei logo em seguida
 -  Escondes ouro aí agora? - Sentada sobre a cama olhou-me assustada, pela minha pressa para ajuda-la
  - Desculpa - eu disse, fitando-a naquela cena.

 O que me acalmava depois das 2 horas da manhã era a luz da televisão, em silêncio, invadindo o quarto, ao som da voz de Olga ao fundo, lindamente. Os olhos de Olga com leves tons de negro e os meus também denunciavam nossas madrugadas. Transávamos ao som de baladas antigas e alucinantes, que tocavam em um útil toca disco, que eu herdará do meu pai. Olga era uma amante de objetos antigos também. A agulha arranhava o Long Play e a voz de Ney Matogrosso cantando "Delírio" soava, as unhas de Olga arranhava minha costa e nós gemiamos. Meus dedos roçavam seus pequenos mamilos rosados e com palavras obscenas, Olga, dominava a cena e nós nos entregávamos. Diziam que era do signo, mas eu nunca creditei isso ao incrível sexo que Olga tinha. Como fosse em um mar, jogávamos nossos corpos na cama, exaustos, expostos, febris sem febre, inteiros e únicos. Olga trocava o disco para o seu preferido e cantava com o resto da força que lhe sobrava . Dormíamos tarde, quase sempre, e eu, ao tocar os longos fios do cabelo cor de sol de Olga, dizia:
- Sing me to sleep, darling.- ao som da canção.

Ao puxar sua saia do meio de roupas velhas e outros trecos, Olga reparou que eu ainda guardava nossos retratos e as fotos que ela revelava para mim. Olga era uma pintura com articulações, eu amava suas poses e bocas, olhos, ossos e cabelo. Olga Reclamava de alguns traços e medidas e do seu nariz. Eu o amava, amava percorrer toda a sua extensão com a ponta dos dedos, enquanto Olga tremia os olhos de sono. Eu amava a curva que eles davam nas lágrimas quando Olga chorava após uma garrafa e meia de vinho. Eu amava o jeito que ela o fotografava. O mesmo nariz agora me encarava junto a um rosto com feição de espanto:
- Olha eu! - Disse Olga
- É... - envergonhei-me
- Não sabia que você as guardava, eu nunca as vi em nenhum porta retrato pela casa.
Eu não sabia também por que tinha tanto apreço àquelas poses. Sorri triste.
O carro parado em frente a casa buzinou, Olga saiu. Eu ouvi leves sons de vozes e um acelerar de carro. Olga voltou dizendo que não suportava grosseria e que agora voltaria sozinha, para onde quer que ela tenha ido. Ao mexer os bolsos da saia, dizendo que ela lhe dava sorte, Olga se espantou com algo, de espantada retirou as mão rápido, mas logo em seguida as colocou de novo no mesmo esconderijo e puxou um papel de foto amassado, era nós dois, no chão, sorrindo. Olga contemplou-a e, como eu naquele instante, seus olhos pareceram também voltar ao passado.

  Era Sábado à noite e nós, após voltarmos do bar que nos encontramos pela primeira vez, jogamos nossos corpos no sofá da sala que cheirava a naftalina, cigarro e roupas sujas. Eu costumava tentar fumar um cigarro muito raramente, esse Sábado era um dia desses. Olga sibilou algo e eu concordei sorrindo, sua imagem era turva na escuridão e os meus olhos já estavam bêbados. 

 - Honey - Eu escutei - A luz da rua desenhando no teu rosto um horizonte, você é bom pra mim

 O nariz e os dedos de Olga cortavam a penumbra, ela fitava-me agora com centímetros de distância e o peso de suas unhas e dedos eu sentia agora sobre o meu rosto, contornando-me. Olga sorriu e eu não soube como não ama-la.

- Eu te a.. - dedos calaram-me
- Em você - Disse Olga - there's a light on, heavy glow, honey.
- Em nós - aconcheguei-me entre seus braços - Em nós, darling.

   No nascer do sol no dia seguinte Olga despertou cedo, eu ouvi o som do chuveiro e depois o cheiro do seu perfume e o barulho de gaveta enquanto ela procurava algo. Acordou-me elétrica e eu só soube sorrir enquanto meus olhos acostumavam-se com a luz do sol. Observei o seu cabelo preso, sua bolsa transversal, sua roupa, sorri. Olga abraçou-me três vezes em um espaço-tempo de uma hora, eu não entendi, mas muito menos iria reclamar. Iríamos à praça, mas Olga mudou o itinerário e disse que nunca tínhamos ido juntos à praia, o carro suspirou como se reclamasse da mudança de destino, mas seguimos para o novo rumo. 
  Olga correu como nunca, suas pernas se esticavam até onde a saia permitia e a marca dos seus pés ficavam pela areia. Eu estava de camiseta e com a minha jaqueta mais bonita, eu não queria suja-la. Nos olhos e no riso de Olga eu percebi que ela perdera todo o seu tom fleumático, seu cabelo cor de sol desenhava raios de luz no ar.  Olga voltou ao meu encontro e puxou-me a mão, eu neguei, mas cedi rapidamente. Fomos andando e cambaleando, tortos até cairmos no chão. Olga sorriu para mim, com o rosto inteiro. 

- Você é bom demais para mim e eu não presto - Falou-me calma
- Eu amo o teu não prestar - retruquei 
- Eu estrago pessoas, eu estrago romances - tentando convencer-me - ninguém é o mesmo depois de mim, não só pelo lado bom
- Eu nasci estragado - sorri - por isso nós nos demos tão certo
- Você é bom demais para mim, mas eu não sou um bom lugar, viu?
- Tu deixaste a luz do sol entrar pelas persianas - respondi com a mão no seu rosto

Olga puxou sua máquina fotográfica da bolsa e disse que queria nos fotografar, mas era um Domingo de abril e a praia em que estávamos encontrava-se praticamente vazia, "não há para quem possamos pedir para nos fotografar" eu disse para ela. Olga pediu as chaves do carro, saiu e voltou após uns 2 minutos com um isopor na mão, "estava na mala desde aquele dia em que levamos cerveja para a festa do teu amigo", Olga apoiou o isopor na areia fofa, equilibrou sua câmera em cima e tiramos duas fotos usando o timer. Nos olhamos na tela digital e eu senti como se nós estivéssemos em um cenário de filme, eu amei a minha roupa e a de Olga sujas. Na volta para casa Olga pediu para que passássemos no shopping mais perto, parei no primeiro que lembrei, Olga entrou com passos rápidos e após um tempo voltou com um envelope na mão 
- O que é isso?
- Imprimi nossa foto, uma cópia para cada. Agora somos eternos 
- There's a light that never goes out - eu disse
- There's a light that never goes out, honey - proferiu Olga

Pedi para Olga guardar a minha foto, ela dobrou e botou no porta luva, a sua ela guardou na bolsa. 


  Quem voltaria para buscar uma saia jeans? Somente uma saia, em que eu deixei no seu bolso, propositalmente, a foto guardada porque não ousei olha lá nunca mais. Olga foi embora segunda-feira, e eu só fui absorver  a notícia três dias depois. A saia jeans ficou no cesto para as roupas sujas, por isso Olga não a levou. Eu sabia onde a saia se encontrava e por isso, na sexta-feira da mesma semana, eu  a carreguei com desdém e joguei-a no lixo, depois me arrependi, catei-a no meio das garrafas de cerveja e caixas de chá, apertei aquela saia forte sobre o meu peito, tirei a foto guardada no porta luvas, sem ousar revê-la, dobrei e a escondi no bolso da saia. Guardei-a. Agora Olga me olhava atônita e sua história indo por água abaixo. Ela não viria pela saia:

- Eu estava passando aqui por perto outra vez. Eu conheci esse cara do carro há umas 2 semanas. Ele disse que nessa parte da cidade tem uns restaurantes ótimos, eu lembrei da tua rua e disse que precisava pegar umas coisas na casa de um amigo. Deu vontade de te ver. Eu não saberia entrar por essa porta e só dizer que voltei - ela se justificou
- Mesmo que tu tivesses escrito que voltava, eu não saberia o que dizer ao ver-te - até Olga se assustou quando eu pronunciei ênclise tão bonita.

  O velho  Pálio cor de prata voltou  à porta novamente, apitou e Olga retirou-se novamente. Eu ouvi vozes longes e pedidos de desculpa, deu dez minutos e Olga voltou e disse que estava de saída e que ela não era para o que fomos. Eu logo pensei que aquele ensaio de Vitor Hénaux ( que Machado de Assis traduziu) estaria correto, mas ao julgar o cara ao volante, ele não merecia ser chamando de "tolo" muito menos uma referência literária.

 - Você tem queda por tolos, Olga?
- Você não é tolo, honey - disse Olga - Você é até bem esperto
- Disso eu sei - Falei estufando o peito
- Mas você nunca me engana, honey. Nunca
- Disso eu sei - secando o peito


  Mas o que me intrigava eram os olhos de Olga fugindo de mim, mirando outro rapaz. Estávamos na praça da cidade, eram 16 horas da tarde e eu senti ciúmes de Olga. Não delatei-me porque sei que ela ignoraria qualquer queixa ciumenta minha. O rapaz era um tanto bonito - Mais que eu até! - pensei. Olga assim como o mirou subitamente, tirou seus olhos dele na mesma proporção. Eu acalmei o coração acelerado e observei que era verdade, eu nunca enganava Olga e ela agora ria de mim. Pediu-me para irmos ao parque onde crianças brincavam, eu fui a contragosto. Olga caminhava dizendo que não entendia o porquê de o céu ser tão nosso, mas tão longe. Crianças corriam e se jogavam no chão de areia, mães gritavam, ouvia-se choros também. Olga observou um balanço esquecido, de assento quase completo por ferrugem e então sentou-se nele, eu quis dizer "levanta daí, menina! Olha tua roupa, toda suja", mas isso soou tão paterno e babaca após eu ver que ela sorria

- Balança-me - Pediu Olga
- E se caíres? - Indaguei 
- Eu puxo você - Disse-me Olga rindo

  O seu olhos fecharam e sua feição era de quem voava ou pelo menos de quem caíra em queda livre

- É lindo isso, né? - Disse Olga no vai e vem do balanço
- O que? - Falou a minha boca infestada por um riso súbito 

- Ter o céu assim, tão perto das mãos.

  Eu deixei o balanço agir sozinho e fotografei Olga nos meus olhos. 

- O mundo é seu - Eu disse em voz rasteira 

  Feito antes, Olga se foi. Deixou-me a saia e um demorado abraço e dois beijos no rosto. Agora não mais sobre o aparador da sala, mas em minhas mãos Olga sufocou um bilhete. Eu quis lê-lo, mas ela disse-me para fazê-lo só depois de sua partida. Seus olhos continuavam verdes, agora tinha tons de vermelho. Ela beijou-me, beijou-me como nunca antes. Limpou o rosto, os olhos, a boca não. Pediu-me desculpas. Eu a disse que não necessitava de desculpas. Saiu e seus dedos tocaram no limiar da porta como um ultimo suspiro. Entrou no carro, ganhou abraços, mas fez uma cara borocoxô.

  Sentei na cadeira de Olga na cozinha e li:

There's a light that never goes out, honey

j.


  Eu sabia agora, ninguém era o mesmo depois de Olga. Mas eu só queria que ela soubesse que toda noite eu ainda digo:

- Sing me to sleep, darling.


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